UMA REGRA QUE VALE OURO!
(José Serra, O Estado de S. Paulo, 11) 1. A introdução da “regra de
ouro” na Constituição de 1988 foi feita pela comissão que tratou de finanças
públicas, da qual fui relator. O autor da emenda, por mim acolhida, foi o
deputado Cesar Maia. A ideia é simples: não se deve gerar dívida para
financiar despesas correntes. Há alguma analogia com o orçamento familiar.
Não convém tomar emprestado para pagar contas de água, luz e telefone, pois
nos meses seguintes as três contas se repetirão, porém acrescidas da dívida e
dos juros.
2. É diferente quando a dívida é usada para investimentos. Estradas, energia,
portos ou saneamento geram empregos, produção e arrecadação no futuro.
Aumentar gastos correntes não garante crescimento econômico, que depende de
aumento de capacidade produtiva, tecnologia, mão de obra qualificada,
exportações de maior valor adicionado e outros fatores.
3. O espírito da regra de ouro é este: estimular os governos a poupar e
investir. Ela foi estabelecida no artigo 167 da Constituição, que veda “a
realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de
capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou
especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por
maioria absoluta”.
4. Em síntese, “operação de crédito” quer dizer aumento da dívida pública,
decorrente de juros ou déficit primários, menos as receitas financeiras do
governo. Já “despesa de capital” são os investimentos e amortizações da
dívida.
5. Assim, a expansão da dívida pública não pode superar os investimentos. Por
hipótese, se o governo investir R$ 50 bilhões em dado ano e as operações de
crédito totalizarem R$ 60 bilhões, a regra de ouro terá sido rompida.
6. Vejamos os números da última década. Em 2007, o pagamento de juros reais
sobre a dívida do governo federal ficou em torno de R$ 100 bilhões, os
investimentos somaram R$ 22 bilhões e o superávit nas contas primárias foi de
R$ 58 bilhões. As receitas financeiras oriundas da remuneração da conta única
e do pagamento dos juros da dívida dos Estados e municípios à União
totalizaram R$ 45 bilhões. Como se vê, a regra de ouro foi cumprida, pois o
pagamento de juros somado ao resultado primário do governo, subtraídas as
receitas financeiras, totalizou saldo negativo de R$ 3 bilhões, resultado
inferior aos R$ 22 bilhões investidos naquele ano.
7. Essa foi a dinâmica dos anos subsequentes, graças a superávits primários
elevados e às transferências de resultados positivos do Banco Central para o
governo.
8. Entre especialistas, o sinal de alerta acendeu entre 2015 e 2016,
quando se percebeu que déficits primários crescentes poriam em xeque a regra
de ouro. De fato, se a devolução de R$ 100 bilhões do BNDES não tivesse sido
feita em 2016, o descumprimento da regra de ouro teria quase ocorrido. Os
investimentos federais foram de R$ 65 bilhões e o líquido das operações de
crédito, de R$ 61 bilhões. Com a devolução feita pelo BNDES (recursos que
aumentaram a dívida no passado para que o banco concedesse empréstimos), as
receitas financeiras aumentaram em R$ 100 bilhões e, assim, o total de
operações de crédito caiu para R$ 39 bilhões negativos.
9. Em 2017, a devolução de R$ 50 bilhões do BNDES auxiliou novamente o
governo no cumprimento da regra. Alguns dados ainda não são oficiais, mas é
possível estimar que os investimentos tenham ficado em torno de R$ 55 bilhões
e as operações de crédito, próximas de R$ 38 bilhões, uma diferença de R$ 17
bilhões. Sem os R$ 50 bilhões do BNDES, a regra teria sido rompida em R$ 33
bilhões. Um efeito colateral dessa transferência foi a perda de capacidade de
financiamento do banco, a juros decentes, para investimentos produtivos.
10. Uma análise dos números e projeções mostra que a regra de ouro tende
a ser descumprida neste e nos próximos anos. Trata-se de um sintoma de
problemas mais sérios, como o desmonte do modelo de crescimento, com forte
impacto sobre as receitas fiscais.
11. Alterar a Constituição para mudar a regra de ouro, no entanto, não
seria conveniente. O bom funcionamento da economia requer credibilidade. Se
as perspectivas sobre o futuro são abaladas, o presente é afetado: exigem-se
mais juros para financiar a dívida, produtores reduzem investimentos,
consumidores guardam dinheiro e o crédito se reduz. Mudar a Constituição
poderia causar esse efeito negativo sobre as expectativas. Por essa razão, o
melhor a fazer, no curto prazo, é valer-se do dispositivo já presente na
Carta Magna que permite o descumprimento temporário da regra com autorização
do Legislativo. É o caminho natural: usar os instrumentos já previstos na
própria Constituição.
12. Mas não podemos parar por aí. O descumprimento da regra de ouro é apenas
a face mais visível da crise de financiamento do Estado. A intenção dos
constituintes, com a regra de ouro – posso afirmar com clareza –, era motivar
o investimento em infraestrutura, fundamental para o crescimento, proibindo
criação de dívida para custear despesas do dia a dia.
13. Mas o investimento público, incluindo Estados, municípios e União, nunca
esteve tão baixo – R$ 127 bilhões no período de 12 meses encerrado em junho
de 2017 –, como mostrou recente estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI).
14. O excesso de vinculações e a rigidez da despesa engessam a ação dos
governantes e impedem a escolha democrática sobre como alocar os recursos dos
impostos. Este é o nó a ser desatado já. Mais de 90% do Orçamento está
predeterminado na Constituição ou em alguma legislação. Não há espaço para
escolha de prioridades.
15. A correção de rumos no plano fiscal deve prosseguir, mas o ajuste não
pode continuar a prejudicar investimentos para elevar gastos correntes. É
hora de recuperarmos a capacidade de planejamento e ação do poder público,
fixando uma estratégia nacional voltada para a expansão das taxas de
crescimento do produto interno bruto (PIB) e para o controle do gasto
público, combatendo desperdícios e privilégios encravados no setor público brasileiro.
(Do Ex_Blog de Casar Maia).
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